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quinta-feira, 19 de março de 2009

REGINALDO VELLOSO

Quem poderia esperar que de um encontro entre a Congregação para o Culto Divino e a Congregação para a Doutrina da Fé, liderada pelo Cardeal Ratzinger, pudesse sair uma “Instructio” sobre a celebração da Sagrada Eucaristia, que não fosse exatamente o que veio a ser a “Pignus redemptionis”?...

Para compreendê-la em toda a sua inteireza, em toda a sua abrangência e em todas as sua implicações, basta ir ao artigo 34, que conclui o 1º parágrafo do capítulo II: De Christifidelium laicorum participatione in Eucharistiae celebratione (Da participação dos fiéis cristãos leigos na celebração da Eucaristia) e assim reza:

Oportet agnoscatur Ecclesiam non convenire voluntate humana, sed convocari a Deo in Spiritu Sancto et per fidem gratuitae vocationi ejus respondere (namque ekklesia necessitudinem habet cum klesis seu vocatio). Neque eucharisticum Sacrificium est existimandum ut “concelebratio” Sacerdotis una cum populo astanti. E contra Eucharistia a Sacerdotibus celebrata donum est “quod auctoritatem communitatis funditus excedat (...) Communitati sese colligenti ad Eucharistiam celebrandam opus omnino est ordinato Sacerdote, qui ei presideat ut re vera eucharistica convocatio esse possit. Aliunde sibi ex se sola communitas non potest concedere ministrum ordinatum”. Urget necessitas voluntatis communis, ut omnis ambiguitas hac in re vitetur et difficultatibus recentiorum annorum remedium afferatur. Ne igitur adhibeantur locutiones, uti sunt “communitas celebrans”, vel “coetus celebrans”, vulgo “celebrating assembly”, “asamblea celebrante”, “assemblée célébrante”, “assemblea celebrante”, aliaeque eiusmodi, quae etiam infeliciter rem politicam redolent, quae omnino aliena oportet sit a celebratione liturgica. Ultra locutiones inopportunas transire, ut hodiernis temporibus Eccelsiae haud raro occurrit, notabilem indicat mentis progressionem.[1]

O que, em linguagem crioula, quer dizer:

É necessário reconhecer que a Igreja não se reúne por humana decisão, mas por Deus é convocada, no Espírito Santo, e responde, pela fé, à gratuita vocação d’Ele (pois que igreja tem a ver com klesis, ou seja, vocação). E nem se pode considerar o Sacrifício eucarístico como “concelebração” do Sacerdote junto com o povo aí presente. Pelo contrário, a Eucaristia, celebrada pelos Sacerdotes é dom “completamente acima da autoridade da comunidade (...) Isso de a comunidade reunir-se para celebrar a Eucaristia é obra que cabe inteiramente ao Sacerdote ordenado, o qual a presidirá para que possa ser realmente verdadeira convocação eucarística. Por outro lado, a comunidade sozinha, por si mesma, não tem condição de conceder-se um ministro ordenado”. Urgente se faz comum decisão, no sentido de evitar-se toda ambigüidade nesta matéria e remediarem-se as dificuldades destes últimos anos. Não se usem, portanto, expressões, como “communitas celebrans”, ou “coetus celebrans”, em vernáculo, “celebrating assembly”, “asamblea celebrante”, “assemblée célébrante”, “assembléia celebrante”, ou outras parecidas, que, inclusive, infelizmente cheiram à política, coisa que deve estar totalmente ausente da celebração litúrgica. Superar expressões inoportunas, como não raro cabe à Igreja nos tempos de hoje, demonstra notável progresso do pensamento.[2]

Eis a Igreja, eis a Liturgia, eis a Eucaristia que a Cúria Romana tenta promover através da sua última Instructio.

É mais que normal, a mais de 2000 anos de distância do Movimento de Jesus, que deu origem à Igreja cristã, e, às vésperas da morte de um papa, que durante mais de 25 anos prima pelo onímodo esforço de fazer a Igreja Católica retroceder aos modelos mais centralizadores, clericais e autoritários da sua complicada história, que as coisas se distanciem tanto da mente e da prática de Jesus Cristo, tal qual nos chegam através dos 4 Evangelhos.

Infelizmente, toda instituição, mais cedo ou mais tarde, tende fatalmente à exacerbação do poder por parte dos que a dirigem. Em se tratando, então, de uma instituição religiosa, aí é que a coisa pega, pois tem tudo para prosperar, “em nome de Deus”, “em nome da fé”, em nome da “obediência” aos legítimos “representantes de Deus”.

Aos poucos, a comunidade cristã, sem nem se aperceber, vai se demitindo da própria dignidade, mesmo que já na 1ª página da Bíblia, conste que “imagem e semelhança”, isto é, representante ou representação de Deus é todo ser humano, assim feito pela vontade do Criador (Gn 1,26). Pouco a pouco, os cristãos e cristãs vão esquecendo a grandeza da vocação de todo o Povo de Deus, solenemente proclamada por ninguém menos que Pedro, que preferiu nos colocar a todos e todas, antes de tudo, como pedras vivas, que se edificam qual templo espiritual, isto é onde habita o Espírito Santo, para formar uma santa comunidade sacerdotal, destinada a oferecer sacrifícios espirituais, que Deus aceita por meio de Jesus Cristo (I Pd 2,5).

Aliás, em que momento da formação litúrgica do Povo de Deus, a gente teve a oportunidade de confrontar-se com a Parábola do Samaritano (Lc 10,25-37), para entender “qual era a de Jesus”(Sic!) a respeito de liturgia”?... A catequese que recebemos quando nos preparamos para a primeira participação plena na Ceia do Senhor, procurou, desde o começo, abrir-nos os olhos para enxergarTemplo de Deus em todo ser humano onde habita o amor... o Sacerdote verdadeiro, em toda pessoa que se curva diante da dor do outro... o único Sacrifício por Deus aceito, em todo gesto sincero de serviço e solidariedade?... Em algum momento da nossa experiência religiosa, chegamos a entender, de uma vez por todas, que, para Jesus e para quem o segue, “liturgia” é, antes de tudo, uma questão existencial, uma questão de vivência, e de vivência do único Mandamento, a saber, do amor de Deus, que se comprova no amor efetivo do próximo (cf. Mc 12,28-34; 1Jo 4,20)?... Já nos convencemos suficientemente de que “sacramentalidade”, entre nós cristãos, tem a ver, antes de tudo, com “testemunho”, testemunho de vida, e, sobretudo, vida solidária com o marginalizado (cf. Mt 25,31-46)?... Só então, estaremos em condição de enfrentar problemas atinentes à liturgia enquanto “celebração”, ritualidade.

Mas o nosso ritual precisa urgentemente ser o de uma Igreja que ouviu da boca do Mestre que onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou aí no meio deles (Mt 18,20), garantindo-nos, assim, a sua Presença Real, independentemente de qualquer outra mediação...

Nosso ritual tem que ser o de uma Igreja que aprendeu a discernir a verdadeira autoridade, não no espírito de dominação tão presente e arraigado nas instituições humanas, mas na capacidade de colocar-se entre os últimos, numa atitude radical de serviço, que não pode ser mera retórica ou demagogia, pois o filho do Homem não veio para ser servido. Ele veio para servir, e para dar a sua vida como resgate em favor de muitos (Mt 20,28), deixando para sempre claro que uma celebração e seja lá o que for expressão de dominação, não será jamais coisa do Reino por ele anunciado...

Nosso ritual haverá de ser o de uma Igreja que se recusa, por ordem do Mestre, a chamar seja quem for de “mestre”, pois apenas um detém o poder de magistério, um só é o Mestre de vocês, e todos vocês são irmãos e irmãs; como também se nega a chamar alguém de Pai [“padre”, “papa”, ou coisa que o valha] pois um só é o Pai de vocês, aquele que está no céu; e, finalmente, não deixa que os outros chamem alguém da gente de doutor, pois um só é o doutor de vocês, o Messias... (Mt 23,8-10).

Nosso ritual deverá ser o de uma Igreja que aprendeu do Mestre a escutar e levar a sério a palavra dos mais humildes, dos iletrados, dos considerados ignorantes, dos sem prestígio, contrapostos aos escribas e fariseus, aos sábios e entendidos do mundo, pois quem escuta vocês, escuta a mim, e quem rejeita vocês, rejeita a mim (Lc 10,16; cf. Mt 11,25; Lc 12,32)...

Nosso ritual será sempre o de uma Igreja que quer imitar o seu Mestre, primeiro, ao abaixar-se para lavar os pés uns dos outros (Jo 13,14), e só entãoao repartir o pão e o vinho(cf. Lc 22,19; 1Cr 11,24-25), duplo mandato confiado a toda e qualquer comunidade cristã, e, portanto, um direito inalienável, que nada tem a ver com o exclusivismo de um pretenso sacerdócio clerical.

Por não se querer entender o óbvio, a verdade evangélica em sua simplicidade e radicalidade originais, é que, 20 séculos depois do acontecimento-Jesus-de-Nazaré, a gente chega a uma aberração como esta malfadada Instructio, capaz de escandalizar-se, em nome do Direito Canônico e do espírito de dominação que o produziu (para nele continuamente espelhar-se), com os modestos, mas significativos avanços feitos em termos de consciência e vivência eclesiais, desde o Concílio Vaticano II.

O problema fundamentalmente está em entender o grupo dos discípulos-apóstolos, não como celula mater da comunidade eclesial, portadora da missão de Jesus, mas como grupo de ministros, hierarcas, ordenados para exercer todo o poder de ligar e desligar. Teme-se, como coisa diabólica, esta sagrada anarquia[3], ou seja esta verdadeira liberdade para a qual Cristo nos libertou (Gl 5,1).

Falar de “comunidade” ou pior ainda, “assembléia celebrante”, realmente “cheira a política”, e estes escribas e fariseus, que há séculos usurparam a cátedra de nosso único Mestre (cf. Mt 23,2), o que mais temem é o exercício da cidadania eclesial pelo Povo de Deus... Por todos os meios tentam esvaziar o discurso da participação e da comunhão, que uma Conferência Episcopal, como a CNBB, há bem 40 anos, no esforço sincero de converter-se ao Evangelho e “voltar às fontes”, vem tentando implementar na vida da Igreja Católica no Brasil.

Impensável para estes senhores seria um serviço de Pedro e seus sucessores ou sucessoras, um serviço de Apóstolos e Apóstolas e seus sucessores e sucessoras, um serviço de presbíteros e presbíteras e seus sucessores e sucessoras, um serviço de diáconos e diaconisas e seus sucessores e sucessoras, um serviço de Animadores e Animadoras de Comunidades, que consistisse essencialmente em promover a inclusão, a participação, a comunhão de todos e todas na vida eclesial, o gosto, o prazer de criar em todos os níveis, mecanismos de diálogo, de tomada coletiva de decisão, de divisão de tarefas, de acordo com as capacidades e dons, em função das necessidades reais de cada comunidade, certos de que o Espírito a todos foi dado, na riqueza e complementariedade dos dons, e do diálogo comunitário é que resultarão decisões que terão muito mais chance de expressar a vontade de Deus, do que as tramas da máfia eclesiástica.

E aqui eu lembraria coisa de uns 20 anos atrás, quando assessorava um encontro de animadoras e animadores litúrgicos na Diocese de Santarém, no interior do Pará, e eles me falavam de comunidades remotas da imensa Amazônia, que, toda semana, se reuniam para o culto dominical, mas só uma vez por ano podiam celebrar a Eucaristia, porque o padre só podia passar por lá de ano em ano... Que tremenda injustiça, que aberração, negar o Banquete da Vida justamente àqueles àquelas a quem Jesus deu prioridade no seu Reino! Será que aquelas pobres comunidades não retratam muito melhor o grupo original dos discípulos-apóstolos que um Sínodo de Bispos?...

É neste contexto que o celibato perde toda a sua qualidade de carisma por causa do Reino e se torna drástica imposição, que já não visa, é claro, à manutenção de propriedades, mas a coisa muito mais sofisticada, a garantir uma aura de sacralidade sobre as pessoas que exercem o poder, para que mais facilmente dominem sobre os ingênuos ou coniventes fiéis, excluindo-se um sem número de vocações aos serviços de animação comunitária, inclusive, todos os serviços litúrgicos.

É neste contexto que se sacraliza igualmente o machismo, se demoniza a mulher e o sexo e, pasmem, se faz do Sacramento do Matrimônio, impedimento para o exercício do tal “ministério sacerdotal”. Isso, sim, que é coisa do diabo!

Tal Igreja, tal Liturgia, tal Eucaristia. A Pignus redemptionis, de ponta a ponta, é uma desgraçadamente lógica e coerente sucessão de lances, cada um mais tragicômico que o outro, desta aberrante maneira de entender e ser Igreja. E não é por nada que já no primeiro parágrafo, o título preferido, para denominar o Cristo da esperança dos cristãos e cristãs, seja precisamente este “Dominas et Dominador invictasque teologicamente pode ser muito bem justificado, mas de fato, no contexto deste libelo da dominação eclesiástica, não faz senão reduzir Jesus Cristo a um ídolo, fabricado à imagem e semelhança dos hodiernos donos da Igreja.

Conseqüência de tudo isso é que, na imensa maioria dos casos, a celebração do Batismo, Sacramento fundante do ser cristão, se reduz a uma rotineira e alinhavada celebração em série, mais destinada a interesses simoníacos do que propriamente à coroação solene de um sério processo de iniciação cristã, enquanto a Ordenação, essa sim, seja sempre, infalivelmente, uma solenidade revestida da maior pompa, como que a sacramentalizar, indelevelmente, a dominação clerical.

Que na prática celebrativa das paróquias e santuários haja abusos, sobretudo, muito louvor que não brota do chão de vidas comprometidas com a Vida, muita alienação, muito descompromisso com as realidades e lutas do povo, muito ópio, como bem dissera Marx, não há dúvida. Mas o que nesta Instructio se combate, essencialmente, não são os abusos, são os avanços, e, em vez de se proporem soluções para um melhor desempenho de uma celebração da “Redenção”, uma celebração da libertação cristã, o que aí se consagra é o espírito de dominação.

Recife, 21 de outubro de 2003

40 anos da Sacrosanctum Concilium,

Reginaldo Veloso, presbítero das CEBs

 

[1] Instructio “Pignus redemptionis”, redação datada de 05 de junho de 2003, página 11.

[2] A versão é do autor deste artigo, por não dispor-se, no momento de exará-lo, de versão oficial.

[3] Anarquia, não no sentido vulgar de desgoverno ou desordem, mas no sentido de ausência de dominação entre nós, porque há um só Senhor (Ef 4,5), Aquele que veio, não para ser servido, mas para servir e dar a vida por muitos (Mt 20,28), e assim, aos poucos, passemos de uma estrutura piramidal e opressiva a uma maneira circular de nos organizarmos, em todos os níveis, inclusive e sobretudo, para celebrar a Ceia do Senhor.

 

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