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quinta-feira, 16 de abril de 2009

O Preconceito Lingüístico

1.     O Preconceito Lingüístico

 A idéia de Brasil como país monolingüe ainda é extremamente veiculada, seja pela escola, seja pelas instituições sociais, políticas ou religiosas, seja pela mídia. A aceitação de um Brasil monolingüe gera um grave problema, “pois na medida em que não se reconhecem os problemas de comunicação entre falantes de diferentes variedades da língua, nada se faz também para resolvê-los” (Bortoni-Ricardo, 1984, p. 9). Paradoxalmente, com tantas referências aos povos indígenas na imprensa devido à comemoração dos “500 anos de Brasil”, ainda nos esquecemos das línguas indígenas. Também não levamos em conta as variantes do português em contato com idiomas estrangeiros nas colônias de imigrantes. Por fim, não são consideradas todas as variantes lingüísticas do português, sejam regionais ou sociais. Ainda dá status falar “corretamente”, na idéia ingênua de que a língua dita culta é uma ponte para a ascensão social. Quem não domina a variante padrão é marginalizado/a e ridicularizado/a: na hora de preencher uma vaga profissional, num concurso vestibular, numa situação de conferência, na escola. Essa variante padrão, no entanto, é reservada a uma ínfima parte da população brasileira (a mesma que detém o poder econômico e político). Não é difícil perceber que o modo de falar “correto” é aquele dessa elite e que o modo “errado” é vinculado a grupos de desprestígio social. Conforme Marcos Bagno (1999), há no Brasil uma “mitologia” do preconceito lingüístico, que prejudica toda a nossa educação e nossa formação enquanto cidadãos para além de um termo teórico. Bagno enumero oito mitos que, no conjunto, servem para solidificar e transmitir a visão (essa sim, errada) de que o Brasil apresenta uma unidade lingüística e que são os/as brasileiros/as que não sabem falar português corretamente (portanto, não há dialetos, variantes, mas sim deformações do português).

Do ponto de vista científico, tais afirmações chegam a ser ridículas e só conseguimos defendê-las a partir de argumentos como: “é certo falar/escrever assim porque assim ensina a Gramática”, “é correto isso porque em Portugal se faz dessa maneira”, “essa forma é feia, não soa bem, não é de bom tom”. A eleição de uma variedade “culta”, padrão tem a ver com causas políticas e históricas, não lingüísticas strictu sensu. Ao estudar com seriedade e sem preconceitos a língua, o que percebemos é que todas as variantes são “corretas”, que todos sabem gramática e que há regularidades no que se convencionou chamar de “erro” gramatical.

Outro equívoco que contribui para a disseminação do preconceito lingüístico é restringir à gramática o ensino da língua. Cada vez mais acredita-se que o domínio da gramática normativa garante leitores/escritores críticos e ativos. Essa falsa noção é largamente difundida, tanto na escola, como em inúmeros manuais “inovadores”, colunas de jornais e programas de rádio e televisão. Não é preciso muita investigação científica para desmistificar tal noção. Ao descrever seu objeto de estudo, os gramáticos têm a falsa idéia de que o compreenderam. Exclui-se, dessa forma, todas as variáveis que interpelam a linguagem e a constituem (fatores biológicos, sociais, históricos, políticos, culturais, afetivos etc.).

O preconceito lingüístico acaba sendo mais uma arma daqueles que mantêm o poder em suas mãos. A marginalização lingüística restringe o acesso a documentos vitais ao cidadão, como a constituição e os contratos. A cidadã ou o cidadão que não domina a variedade padrão está privado de seus direitos (será que podemos, então, considerá-la/o como cidadã/o?).

 

 

2.   Cultura, Preconceito E Discriminação

Uma das causas do preconceito é o fato de que percebemos o mundo através das grades de nossa cultura, que pode ser assim definida: “conjunto de símbolos compartilhado pelos integrantes de determinado grupo social e que lhes permite atribuir sentido ao mundo em que vivem e às suas ações” (Tassinari, 1995). Além disso, toda cultura é dinâmica, pois a pessoa humana está sempre interagindo com o mundo em que vive, criando e alterando seus símbolos. A cultura está ligada à história particular de cada grupo social e, portanto, não existe uma cultura “atrasada”, “primitiva”. Também não podemos pensar que haja estágios determinados pelos quais as culturas têm de passar, tal como as noções de cultura “primitiva” e “avançada” (tomamos por base nossa cultura para parametrizar as outras, ou seja: criamos preconceitos). As culturas estão em permanente transformação, buscando novas interpretações das novas realidades que se apresentam e, “ao passarem por transformações, continuam diferentes umas das outras” (Tassinari, 1995).

Ora, esse conjunto simbólico específico, que permeia todas as nossas ações, só faz sentido dentro do grupo social a que pertence. As explicações dos fenômenos que ocorrem no mundo são particulares desse grupo, de sua cultura; portanto, não podem ser generalizadas. Quando tomamos nossos pressupostos para entender ou julgar outra cultura, outro grupo, adotamos uma atitude etnocêntrica, preconceituosa. Como nos diz Luís Donisete B. Grupioni (1995, p.485):

“Quase sempre, temos uma valorização positiva do nosso próprio grupo, aliado a um preconceito acrítico em favor do nosso grupo e uma visão distorcida e preconceituosa em relação aos demais. Precisamos, assim, perceber que somos uma cultura, um grupo, e mesmo uma nação, no meio de muitas outras.”

 

 

 

 

 

3   A Escola, O Livro Didático E O Preconceito

A escola é o lugar das diferenças. Ela já difere aqueles que lá entraram dos que não têm acesso a ela. Como uma instituição delimitadora, “ela afirma o que cada um pode (ou não pode) fazer, ela separa e institui” (Louro, 1997, p.58). Mas, a escola, assim como a sociedade e a mídia em geral, ainda não coloca à baila os problemas do preconceito. Tudo se passa como se fôssemos ausentes de preconceito e tratamos de forma igual indivíduos e grupos de indivíduos das mais diversas origens sociais e culturais. Os professores e as professoras ainda não incorporaram em seus trabalhos as discussões acadêmicas  e servem de instrumento à disseminação do preconceito. Todos os problemas e as soluções, que no meio acadêmico parecem óbvias, não chegam à escola, lugar crucial da expansão ou do combate ao preconceito. É no período escolar que a maioria de nossas crianças tomam contato com outras culturas e outros grupos sociais. Nesse rico ambiente de diferenças, o que vemos é o tratamento preconceituoso, a desinformação, a discriminação. A escola se apresenta como uma oportunidade ímpar na discussão de preconceitos e injustiças sociais. No entanto, é com pesar que verificamos que ela não é palco de debates, mas sim um palco de marionetes. Nossa escolar reproduz, comandada pelos fios do preconceito e do poder, a noção estereotipada do “índio” genérico, o mito da unidade lingüística, a exaltação da norma culta como instrumento de ascensão social, o mito da “democracia racial”. Como instituição delimitadora, ela pode “fabricar” indivíduos que serão peças dos jogos de poder. Caberá ao professor e à professora a árdua tarefa de elucidar as regras desses jogos aos novos indivíduos que se formam (como veremos no próximo capítulo).

Vejamos agora como o preconceito é abordado nos materiais que os professores e as professoras utilizam na sua prática escolar. Comecemos por analisar o que os referenciais do Ministério da Educação têm a dizer a respeito.

 

 

3.  Pluralidade Cultural

Os povos indígenas têm sido, desde a chegada dos colonizadores europeus, vítimas de preconceito. Da idéia de habitantes do paraíso, passando pelo purgatório até chegar à idéia de condenados do demônio, os povos indígenas são vistos ora como o “bom selvagem” ora como o “matuto traiçoeiro”. Suas especificidades são ignoradas e eles são tratados genericamente por índio, como se todos os povos falassem a mesma língua, partilhassem as mesmas experiências históricas, enfim, como se houvesse uma única “cultura indígena”. Há no Brasil, atualmente cerca de 206 povos indígenas, falando 180 línguas diferentes, ocupando regiões muito diversas (número que pode impressionar, à primeira vista, mas muito reduzido se comparado às estimativas que se fazem quando da época da chegada dos portugueses). Como estes povos indígenas representam cerca de 0,2% da população total brasileira (portanto, uma minoria social), eles ficam à margem de direitos fundamentais a todos os cidadãos e de seus direitos específicos, previstos na constituição.

O MEC reconhece que o Brasil possui uma enorme diversidade cultural, pregando que devemos conhecê-la e respeitá-la. Segundo os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais 1997, p.31) “as discriminações praticadas com base em diferenças ficam ocultas sob o manto de uma igualdade que não se efetiva”. Nos objetivos gerais do volume Pluralidade cultural, orientação sexual consta que devemos repudiar toda discriminação e valorizar o convívio na diferença, reconhecer que há sérias desigualdades sociais, mas que esta é uma realidade passível de mudanças. As 206 etnias indígenas, os/as descendentes de africanos e os grupos de imigrantes também lá constam, bem como a pessoa do campo. O problema que encontramos nos PCN é que as discussões ficam muito no campo teórico, a despeito de haver uma parte dedicada à efetivação do tema pluralidade cultural em sala de aula. Segundo o documento do MEC, o desafio que se coloca é o de “a escola se constitui um espaço de resistência, isto é, de criação de outras formas de relação social e interpessoal mediante a interação entre o trabalho educativo escolar e as questões sociais, posicionando-se critica e responsavelmente perante elas” (PCN, 1997, p.52). Mas ao questionar o “viver” e o “aprender” pluralidade cultural, circunda-se essa questão sem respondê-la, finalizando com uma frase de efeito: “sem dúvida, pluralidade vive-se, ensina-se e aprende-se” (PCN, 1997, p.57). Os maiores problemas que os documentos do MEC enfrentam são: apesar de conter inovações e reflexões críticas, eles ainda são um instrumento do poder dominante; seu conteúdo ainda é desconhecido da maioria de nossos educadores e educadoras.

Interessante notar que os PCN trazem uma crítica aos livros didáticos. Nela, o documento reconhece que os materiais didáticos são, freqüentemente, veículos de disseminação do preconceito e da desinformação, citando como exemplo a divulgação da falsa idéia de uma organização e uma cultura indígena única a todos os povos.

O RCNEI (Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas 1998, p.22) diz que “o Brasil é uma nação constituída por grande variedade de grupos étnicos, com histórias, saberes, culturas e, na maioria das situações, línguas próprias”. Mas logo em seguida, nos surpreendemos quando o documento afirma que essa diversidade sociocultural deve ser preservada. Ora, uma cultura, como já vimos, é dinâmica. Ela não deve ser vista como fixa no tempo, passível de ser preservada. Outro ponto problemático é a (não) aceitação de que temos nações socioculturalmente diversas, pois isso comprometeria a noção de Brasil como uma entidade nacional; tratam-se os povos indígenas por “grupos”. Ponto a favor desse documento é o fato de (tentar) privilegiar os pontos-de-vista dos próprios índios, pois é a voz deles que precisamos ouvir. Eles têm a real dimensão dos problemas por quais passam.

 

4.   O Papel Da Escola E Do Livro Didático Na Desmistificação Do Preconceito

Como já comentado na introdução deste trabalho, a figura do professor ou da professora e do livro didático são verdadeiras autoridades, que as crianças respeitam. A escola deve ser vista como um espaço de debates, um pequeno esforço na desconstrução do preconceito. É fundamental, então, que tenhamos bem claras nossas posições teóricas, nossas práticas escolares e o alcance dos nossos trabalhos.

Ao professor e à professora (a nós, estudantes de Letras, futuros esducadores e educadoras), caberá a tarefa de explicitar os mecanismos do preconceito e da discriminação, suas formas praticadas na escola (como o mito da “democracia racial” e da unidade lingüística do Brasil). É necessário que professores e professoras reconheçam a diversidade cultural brasileira e a crise no ensino da língua e se dar conta que essa diversidade/crise está presente na (sua) sala de aula, e não somente no contraste Nordeste x Sudeste, por exemplo. É preciso “questionar não apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que aprendem” (Louro, 1997, p.64). Para usar o termo de Bagno (1999), precisamos sabotar o preconceito: “formando-nos e informando-nos”.

É claro que não podemos ser ingênuos, a ponto de pensar que a escola vai acabar com o preconceito, mas, como nos diz Louro (1997, p.86):

“Sem alimentar uma postura reducionista ou ingênua - que supõe ser possível transformar toda a sociedade a partir da escola ou supõe ser possível eliminar as relações de pode em qualquer instância - isso implica adotar uma atitude vigilante e contínua no sentido de procurar desestabilizar as divisões e problematizar a conformidade com o ‘natural’; isso implica disposição e capacidade para interferir nos jogos de poder.”

 

Essa atitude vigilante requer, então: uma revisão de nossas fontes bibliográficas e históricas e, como aponta Louro (1997, p.64) “atrevidamente é preciso, também, problematizar as teorias que orientam nosso trabalho (incluindo, aqui, até mesmo aquelas teorias consideradas ‘críticas’)”; cobrar do Governo a supervisão dos livros e o apoio à divulgação de informações reais (Cf. Grupioni, 1995); deixar de reduzir o ensino da língua à gramática da língua “culta” - ensinar língua portuguesa não é apenas ensinar gramática normativa; divulgar aos pais e às mães os conhecimentos, as posições teóricas e explicitar a eles também os mecanismos do preconceito. Finalmente, temos de ouvir as vozes das minorias: legar aos índios a tarefa de divulgar sua cultura, deixar o/a aluno/a se expressar e expor seus medos e preconceitos, discutindo-os. Às vezes, esquecemo-nos de que são essas minorias que têm a real dimensão do seu (nosso) problema.

Mas tudo isso tem de realmente acontecer, na prática escolar diária, tem de sair das rodas de discussões acadêmicas e penetrar na sala de aula.

 

5.   Refletindo a Prática Escolar

 

A partir da reflexão sobre sua própria prática, o professor ou a professora poderão colocar uma legenda em seu trabalho, sua base teórica. Há que se ter um movimento contínuo mútuo entre prática e teoria. É somente com a “crítica ativa da nossa prática diária em sala de aula” (Bagno, 1999, p.140) que poderemos concretizar esse (ainda) sonho do convívio na diversidade. Temos de ouvir os professores e as professoras, pois apesar de todos os problemas, há inúmeras experiências muito bem sucedidas, que podem “abalar os jogos de poder” e que devem ser divulgadas, valorizando a prática escolar, colocando-a em contato com nossa realidade cultural diversa. E, por fim, não podemos nos esquecer que todos somos diferentes e, então, uma postura vigilante contra o preconceito tem de ser contínua, pois estamos a toda hora em contato com diferenças.

 

 

6. Referências Bibliográficas:

 

Rodrigues, fábio della paschoa. Preconceito lingüístico e não-lingüístico na escola/livro didático.htp://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/p00003.htm#_Toc10211373. 12h:34min.

 

Bagno, Marcos. (1999). Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola.

 

 

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